Onde está o degrau?

por Pablo Neves - designer e catequista

Às vezes fico imaginando como seria se um dia me colocassem num quarto para dormir, mas quando eu adentrasse no ambiente, me deparasse com um grande banheiro. A cama seria uma pia, o guarda roupas seria um armário e o criado mudo seria um vaso sanitário.

Certamente, depois de algumas horas tentando me adaptar, guardando minhas roupas junto das escovas de dentes, colocando meus óculos sobre a tampa do vaso e tentando dormir em cima de uma pia, por maior que fosse o desconforto, finalmente eu pegaria no sono, afinal, a natureza falaria mais alto.

É justamente essa sensação que tenho quando hoje entro em alguns templos católicos, sobretudo construídos nos últimos 40 anos. Claro, eles são de fato Igrejas, pois seus endereços e referências os apontam como tais, e neles de fato são realizados os santos sacramentos. Porém, sinceramente, só uma imaginação muito forçada ou completo desconhecimento do que de fato é um espaço sagrado, seria capaz de fazer com que um fiel enxergasse, de fato, a “Casa de Deus” num local desses.

Hoje tornou-se comum encontrar Igrejas mundo afora que parecem ser muitas coisas, menos de fato uma Igreja. Falo de Igreja como local destinado ao culto Cristão, onde o fiel é levado a experimentar a idéia do sagrado, a sair da barulheira das ruas, dos sons de músicas que só diminuem a pessoa humana, de formas e cores comuns no dia a dia, de cheiros e sensações que em nada (ou parcialmente nada) lembrem o mundo exterior. Falo de Igreja como um lugar onde é possível “subir um degrau acima do mundo”, onde mesmo cientes de que é neste mundo cheio de pecado e dor que vivemos, cremos possuir um local reservado e seguro de todas essas mazelas, como um verdadeiro pedaço de céu na terra.

Claro, o homem não pode “reproduzir” o céu, mas pode sim criar condições, através da inteligência dada a ele pelo próprio Deus, de fazer com que as pessoas vivenciem o que é “contemplar o sagrado”. Assim como ninguém pode materializar um sentimento por outra pessoa, mas pode expressá-lo através de palavras, gestos, atitudes e presentes cuidadosamente elaborados, o homem é sim capaz de fazer com que ele mesmo experimente o que é viver num local onde tudo parece ser único e nada o lembre o mundo exterior, tão manchado pelo pecado.

Alguns poderiam argumentar: mas Pablo, o apelo visual não importa, pois independente de ser em uma catedral gótica ou numa feira, o santo sacrifício da Missa há de se realizar de qualquer forma!

Pois é, de fato, para que o sacramento se concretize, é necessário matéria, intenção, a forma e um ministro. Arte e arquitetura não realizam sacramento algum. Da mesma forma que o que faz o advogado não é seu terno e gravata, nem o soldado sua farda, nem o médico seu jaleco branco e nem do monge seu hábito.

Porém, se você é homem e está noivo, experiente dizer, quando sua noiva falar em casamento na Igreja, um belo vestido e toda decoração da festa, etc...que você teve a grande idéia de fazer tudo no terraço da sua casa, com a roupa que você e ela usam todo dia para ir ao trabalho e que no máximo irá servir uma coca com biscoitos cream cracker no final, pois o que importa mesmo é o fato de vocês se casarem. A bíblia condena os adivinhos, mas dessa vez eu faço questão de dizer que já sei o que vai acontecer com você!

Lembro-me bem quando conversei sobre esse assunto com uma jovem já casada, mas que não havia recebido o sacramento da Crisma e estava acompanhando minha turma de catequese. Mal terminei de falar e ela me interrompeu dizendo: “Não é minha aliança que me faz ser casada, mas eu faço questão de andar sempre com ela e mostrar para todos como sinal de meu amor por meu marido!”.

O homem é, por natureza, um ser “visual”, bem como um ser “ouvinte”. Acho curioso quando meu pároco diz que “não é a toa que Deus nos dotou de dois olhos e dois ouvidos, mas somente com uma boca”. O próprio Cristo deu sinais visíveis de Sua Divindade ao realizar os milagres descritos no Evangelho, tanto pela natureza dos milagres em si, os quais podiam ser testemunhados por todos, quanto pelas formas com que muitas vezes estes milagres foram realizados. Ao cuspir no chão e com aquela mistura de saliva e areia curar o cego, o Senhor quis fazer visível seu poder. Ele poderia curar sem a areia e a saliva, mas se o fez assim, é porque sabia o quanto esse apelo “visual” era importante.

Longe de mim defender, como já citei em outros artigos, uma mera cópia das Igrejas da idade média, que são lindas sim, mas que não tem pra si a exclusividade do belo. A própria Igreja instrui que dentro do rigor litúrgico, a arte e a arquitetura sejam feitas de forma a acompanhar a evolução das escolas artísticas, bem como se beneficiar das novas técnicas que venham incrementar e fomentar a beleza dentro dos espaços sagrados.

Então o que há com a arte e a arquitetura hoje? Por que templos tão vazios de mistério e beleza que remeta ao sagrado?

Com a arte e a arquitetura, posso responder com firmeza: Não há problema algum! Hoje ela é capaz de criar um sistema acústico que permita aos fiéis ouvir muito melhor o que está sendo falado pelo sacerdote. A arquitetura é capaz de criar estruturas mais confortáveis, mais seguras e bem mais baratas. A arte é capaz de utilizar novos materiais, novas técnicas, muito mais rápidas em execução e muito mais duradouras. E onde está o problema então? Ora, o problema está com os artistas e arquitetos, que em sua maioria, não possuem noção alguma de espiritualidade, imprimindo em suas obras suas próprias noções de beleza, tão marcadas pelo simplismo formal e pela pobreza de significados, típicos da sociedade contemporânea. Eles constroem monumentos para si próprios, como grandes portfólios pessoais que, por vezes, alguns usam para orar e celebrar a Missa. Não projetam espaços para Deus, contemplando-O como centro de todo o culto, mas projetam espaços voltados do homem para o homem, colocando Deus em segundo (ou terceiro) plano. Projetam a casa de Deus como projetam um shopping ou um motel, partindo simplesmente de suas perspectivas pessoais, de suas visões humanas e de suas ânsias de provar a si mesmos (ou aos seus colegas de profissão) que são capazes. Pior, projetam espaços e peças que muitas vezes só eles mesmos, em suas pobrezas espirituais, compreendem ou acham que compreendem. Tudo chama atenção para tudo, menos para Deus. Tudo remete a milhares de conceitos e teorias (ou não), mas nada (ou quase nada) nos faz enxergar o céu. Nada, ou quase nada, nos leva a subir um “degrau acima do mundo”.

A Igreja, como espaço sagrado, não só deve “ser Igreja”, mas sobretudo “parecer Igreja”, para que o fiel possa, ao adentrar nela, sentir-se como se estivesse num outro plano, em algo superior. Uma Igreja deve transmitir a idéia do sagrado, não em conceitos só entendidos ou captados por seus projetistas, mas possuir sinais já compreensíveis e comuns à visão geral, mesmo que repaginados, reprojetados ou redesenhados, mas que continuem a transmitir o mistério do espaço sagrado. Igrejas devem ser espaços catequéticos por excelência, levando o fiel através de suas formas, cores e componentes, a compreender e vivenciar a mistério do sagrado, sem que necessariamente haja um manual explicando detalhe por detalhe. Devem fixar a idéia de que a Igreja, como corpo místico de Cristo, é única e eterna, imutável não por atraso intelectual, mas imutável por ser perfeita e, aquilo que é perfeito, não precisa mudar ou evoluir. E não que “não mudar ou evoluir” signifique levar os fiéis a reunirem-se novamente nas catacumbas, mas sim expressar, mesmo na arte contemporânea, a continuidade do ontem com a competência do hoje. Fazer com que o fiel sinta a Igreja como algo atemporal, onde independente do estilo artístico ou arquitetônico, o sagrado e o mistério sejam claramente perceptíveis e possivelmente contempláveis.

Já chega de entrar numa Igreja e, para de fato se saber que se está na Casa de Deus, ter que necessariamente fechar os olhos.